A cidade de Canoinhas está localizada no norte de Santa Catarina, divisa com o Paraná, na região do Contestado (você já deve ter ouvido falar dela em alguma aula de história). Durante décadas a economia local foi movimentada pela extração de madeira, material utilizado em muitas de suas casas, inclusive algumas de grande porte. Chama a atenção também o fato de que seus habitantes mantêm uma curiosa aversão a uma marca de carros italianos.
Não chega ser um lugar muito bonito, e até onde eu sei não é considerada um destino turístico. Mesmo assim fiz questão de visitá-la na última etapa do roteiro que eu fiz pelas micro-cervejarias catarinenses. Após passar por Blumenau, Pomerode, Gaspar, Brusque, entre outras, rumei para Canoinhas, um pouco fora de rota, mas nada maior do que minha curiosidade.
Através da internet descobri que lá havia uma cervejaria em funcionamento desde 1908, e administrada pelo Sr. Rupprecht Loeffler, com mais de 90 anos, cujo pai comprou-a em 1924. Num período em que praticamente todas as pequenas cervejarias foram absorvidas pelas médias, e estas pelas grandes, Herr Loeffler manteve-se firme e forte, sendo considerado o mestre-cervejeiro mais antigo em atividade no Brasil.
A Cervejaria Canoiense fica em uma construção de tijolos à vista, quase um galpão cercado com araucárias, típicas da região. Ao passar pela porta, onde se lê a inscrição "cerveja artesanal", é como se estivéssemos entrando numa cápsula do tempo.
Numa mesa à direita da porta o anfitrião aguarda seus visitantes, sem nunca esquecer a gravata. Na ocasião, seu Loeffler gozava de boa saúde e de uma lucidez incrível para quem já estava com 90 anos. Também foi muito simpático e solícito, contando-me um pouco sobre sua cervejaria e suas caçadas com seu irmão mais velho, numa distante época em que a fauna e a flora da região eram abundantes. Disse que o motivo de apresentar tão boa saúde mesmo em idade tão avançada era o litro de cerveja que bebia diariamente. "Não tem conservantes", dizia ele, "é saudável", mostrando ser também bom de marketing.
Pouca coisa deve ter mudado lá dentro nas últimas décadas. Este primeiro ambiente é um misto de bar, recepção, escritório, depósito e museu, ricamente decorado com diversos animais empalhados, peles, fotografias, rótulos de bebida, e outras lembranças. Uma geladeira guarda não só a cerveja servida no local, mas também uma espécie de refrigerante de produção própria. Além das garrafas tradicionais de 600 ml na cor marrom, a cerveja também é acondicionada naquelas antigas garrafas de refrigerante de 1 lt.
Posso até estar enganado, mas acho que essa decoração atípica não fora feita visando deixar o local mais exótico e agradar os visitantes, mas sim porque era deste modo que o seu Loeffler gostava. Todas aquelas lembranças penduradas nas paredes de modo aparentemente aleatório faziam parte de sua vida, e se esta cervejaria era a sua vida, é normal que parte dela ficasse lá exposta, como fragmentos de sua memória.
Nos outros ambientes é que são feitas todas as etapas necessárias para a produção da cerveja. Os equipamentos são os mesmo de muitas, mas muitas décadas atrás. Não perguntei, mas não me espantaria se descobrisse que são os mesmos de 1908.
Todos sabem que em matéria de entorpecentes sou um careta assumido, mas duvido que exista substância psicoativa capaz de produzir alguma sensação semelhante à que senti visitando este lugar. É impossível de descrever, tanto pela complexidade de emoções quanto pela minha deficiência literária. Nunca tinha vista nada semelhante e provavelmente nunca mais verei.
Por fim... a cerveja. Bem, é praticamente um consenso entre os "cervejólogos" que as cervejas da Canoiense deixam a desejar. Sem papas na língua, a nova leva de beer sommeliers classifica-as como "ruim".
Maledicência! Sempre existem ciclistas metafóricos para atrapalhar o fluxo de nossas alegrias. É uma cerveja que foge do tradicional, mas aposto que se ganhasse o rótulo de uma lambic belga não faltariam admiradores ressaltando o "aspecto ácido proveniente de leveduras selvagens".
Acontece que uma visita à Canoiense é muito mais do que apenas cerveja.
Bem, ao menos era até o último domingo, dia 27 de fevereiro, quando o Sr. Rupprecht Loeffler faleceu, aos 93 anos. Este texto é uma homenagem a este senhor e seu amor pela cerveja artesanal.
Bela homenagem, adeus Herr Loeffler...
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