quarta-feira, 26 de novembro de 2014

O Resgate da Figura do Cacique Nheçu


Tempos atrás fiquei sabendo da existência de uma associação chamada Nheçuanos, cujo nome é uma referência ao cacique guarani Nheçu, responsável por ordenar o assassinato dos padres Roque Gonzales, João de Castilhos e Afonso Rodrigues, ocorrido no início do séc. XVII aqui na região das Missões. O objetivo desta associação é fazer a revisão histórica da 1ª fase das missões jesuíticas e o resgate da figura do cacique.

Sempre fico bastante receoso quando alguém vem com esta conversa de revisar a história, por ser algo que costuma ser feito com más intenções, mas desta vez me obrigo a concordar com a proposta.

O índio no Brasil sempre foi retratado como uma figura infantilizada, idílica e pacífica, sem vontade própria e facilmente manipulável por qualquer um que lhe impusesse algo. Uma mistura do bom selvagem de Rousseau com o zeloso Peri de José de Alencar, duas figuras ficcionais cuja fusão não poderia resultar algo condizente com a realidade.

O que haveria de tão diferente neles para que estes não agissem como qualquer outro ser humano, passíveis tanto de acertos quanto de erros? O que os faria imunes a sentimentos como paixão, raiva, inveja e vaidade,  a pretensões de expansão territorial e de acúmulo de poder e riquezas? 

Com a instalação da missões jesuíticas em seu território e consequente conversão de muitos guaranis à fé cristã, Nheçu viu seu poder diminuir. E é uma grande injustiça julgar sua reação com os parâmetros contemporâneos de diplomacia. O cacique agiu como era o costume de sua tribo e, utilizando as prerrogativas que tinha por ser a autoridade maior daquela terra, decidiu por fim à vida daqueles que se mostraram um incômodo para ele, até então o grande chefe desta região. Novamente, não há motivos para retratar o que se seguiu como sendo uma brutalidade: os padres tiveram o destino que qualquer inimigo dos guaranis teria em situação semelhante. Não é correto questionar a ausência de um tribunal com direito à defesa em uma cultura onde as decisões eram monocráticas, assim como não faz sentido questionar a pena capital em detrimento a penas mais brandas, como o desterro, pois estaríamos avaliando a questão segundo códigos morais que eram estranhos a eles. 

"Senta aqui, Padre! Que tal uma conversa para superarmos nossas diferenças?"

Outro mito muito divulgado é que os índios foram obrigados a abrir mão de sua cultura, e este episódio é uma grande oportunidade para desmascarar esta mentira. Com o assassinato dos jesuítas, os guaranis estavam livres para voltar ao seu modo de vida anterior, sob o comando de seu líder. Mas não foi este o desejo da maioria: de modo totalmente voluntário eles se revoltaram com o ocorrido e rapidamente subjugaram os poucos índios obedientes ao cacique. Diante deste quadro, Nheçu abandonou aqueles que ainda lhe eram fiéis e fugiu, e nunca mais se teve notícias deles.

É por isso que eu aplaudo a ideia de resgatar a figura de Nheçu. Despindo-o de qualquer contorno mitológico, estaremos diante de ser humano como qualquer um de nós, cujos atos dependiam de suas próprias decisões, das tradições de seu povo e do contexto histórico no qual ele estava inserido. Durante séculos, o cacique guarani foi retratado como um chefe bárbaro e sanguinário, sendo esta uma acusação descontextualizada por se basear em padrões morais e culturais que não os seus. É bom que as pessoas saibam o que realmente aconteceu. Na verdade, não é bem o caso de revisar a história, mas sim compreender realmente quem foram seus personagens.

quarta-feira, 12 de novembro de 2014

Há caracóis.

Admiro quem consegue se expressar com objetividade, fazendo uso de poucas palavras. E este é um dos motivos por ter sido prontamente cativado por um cartaz muito simples que vi com frequência pelas ruas de Lisboa, na porta de muitos bares. Uma frase simples, apenas duas palavras, sujeito inexistente, verbo transitivo direto e objeto direto, ornamentada com uma simpática figura desenhada a mão.


Simples, direto e objetivo. As duas palavras transmitem toda a mensagem em sua plenitude. O desenho também tem sua importância, é um belo reforço no apelo visual, capaz de chamar a atenção de olhos atentos que vislumbram detalhes da charmosa capital portuguesa.

Claro que no instante que vi este cartaz pela primeira vez minha curiosidade gastronômica despertou, soando o sinal de alerta: eu precisava comer aquilo! Já comentei que tenho uma certa compulsão em experimentar pratos diferentes, algo que costumo fazer quando viajo, mas desta vez teria pela frente uma "iguaria" de aspecto nada usual, como nunca antes provara.

Chegamos ao Bairro Alto pelo Elevador da Glória, e sem muito critério escolhi o primeiro bar que dava as boas-vindas aos seus frequentadores com o dito cartaz. Era uma noite fria, maio e o inverno europeu davam seus últimos suspiros.

Entramos e pedi um imperial (chopp). Ressabiado com o traumático episódios do sarapatel, escolhi a menor porção da prato e, sem muita espera, seu Manuel(?) trouxe até nossa mesa uma generosa quantidade dos moluscos, muito mais do que eu tinha a intenção de comer. Eles eram maiores do que as lesmas que existem por aqui, e comparadas com estas suas conchas apresentavam paredes bem mais rígidas.  


O gosto não era nada de excepcional, e a textura lembrava frutos do mar. Mas um detalhe deixou-me bastante incomodado: as "anteninhas", que na verdade são as haste que dão suporte aos olhos dos bichinhos. A presença delas não apenas tornava impossível dissociar minha comida à repulsiva imagem deste animal vivo, mas também dava a impressão de que aqueles caracóis iriam despertar a qualquer momento, primeiro com movimentos descoordenados das "antenas", depois com suas conchas mexendo-se pelo prato, e por fim com todos eles começando a se espalhar pela minha mesa, saindo em disparada(?) em todas as direções. Alguns voltariam para a cozinha, outros se afogariam nos copos de cerveja dos clientes, enquanto que os mais dispostos ganhariam as ruas, onde os que não fossem atropelados pelo eléctrico (bonde) poderiam chegar até a casa de fado que ficava uns passos dali. No dia seguinte, é claro.

O problema eram mesmo as "antenas". Não sei o quão trabalhoso seria para o cozinheiro removê-las uma por uma, também ignoro se o procedimento alteraria o sabor do produto. Talvez a solução seja o aprimoramento genético, desenvolver uma raça de caracóis sem olhos. Além de melhorar consideravelmente o aspecto visual do prato, algo fundamental numa experiência gastronômica, acabaria com o problema da fuga dos caracóis do seu cativeiro.

Como o sabor não me agradou, deixei mais da metade da porção no prato, satisfeito por ter encarado mais este desafio. Terminei meu chopp e saímos em busca de um bom bacalhau.

sexta-feira, 19 de setembro de 2014

O Legítimo Maragato

Aqui no Rio Grande do Sul não é preciso de calendário para saber que estamos em setembro, basta perceber que, de uma hora para a outra, muitas pessoas passam a usar bombacha, botas de couro, guaiaca e lenço no pescoço, roupas que na maior parte do ano permanecem guardadas no fundo do armário, mas que nesta época passam a fazer parte da paisagem local.

Mas não é apenas o figurino que muda neste início de primavera: o idioma local também recebe um forte incremento de regionalismos que usualmente ficam escondidos em algum escaninho da memória e que raramente são ouvidos em outros meses do ano: bagual, guasca, indiada macanuda, lenço maragato, expressões que, devido à falta de conhecimento etimológico, podem tornar-se não mais do que meros adornos fonéticos.

Atentem para o termo que designa os lenços vermelhos usados por muitos gaúchos: é sabido que se trata de um símbolo identificado com um grupo político, mas talvez a grande maioria ignore que maragato é o gentílico de Maragateria, região do centro-norte da Espanha de onde saíram emigrantes que se estabeleceram no Uruguai, povoando locais onde, mais tarde, os partidários de Gaspar Silveira Martins se exilaram antes da eclosão da Revolução Federalista. 

A cidade mais importante da Maragateria chama-se Astorga, conhecida por causa do seu Palácio Episcopal, obra do famoso arquiteto catalão Antoni Gaudí e que hoje abriga o Museo de los Caminos. A região é cortada pela rota utilizada pela maioria dos peregrinos que se dirigem a Santiago de Compostela.

Palácio Episcopal
Devido ao grande número de peregrinos que percorrem a região, esta é bem servida de opções de hospedagem e alimentação, que podem ser utilizadas por quem deseja conhecer seus pequenos, pitorescos e belos pueblos semi-abandonados, com suas casas e pequenas igrejas feitas de pedra, como Santa Catalina de Somoza, Foncebadón e Rabanal del Camino.


Prato preferido de Júlio de Castilhos

No ano que vem, quando o setembro chegar e as pessoas novamente usarem o termo maragato, lembrem-se de que não se trata apenas da cor de um lenço.


quarta-feira, 13 de agosto de 2014

Entre gostar de futebol e gostar de Futebol.

Na minha época de colégio lembro ter estudado que havia uma diferença entre história e estória, sendo que a primeira estava relacionada com os fatos reais e a segunda com os fictícios. E quando o termo História vinha assim grafado, com inicial maiúscula (ou CAIXA ALTA, como li nas versões em português de Soljenitsin), ele descrevia a disciplina escolar.

Mas a língua portuguesa, esta personagem tão sofrida e sempre submissa àqueles que a representam, justamente quem mais deveria tratá-la com carinho, aceitou que esta questão fosse simplificada e o termo estória caiu em desuso. E apesar desta clara demonstração de que os idiomas tendem a refletir a preguiça de quem os utiliza, não me importo em ir contra as caudalosas correntes do ócio ortográfico.

Há palavras com significados variados que não permitem que se estabeleça uma linha divisória entre eles sem que haja explicações adicionais, casos em que alguma diferença ortográfica para definir com clareza  sua compreensão seria bem-vinda. Um exemplo é futebol, cujo termo pode definir a modalidade esportiva, ou seja, a disputa entre duas equipes de 11 jogadores cada em dois tempos de 45 minutos, conforme as regra pré-estabelecidas, mas também pode ser utilizado para descrever um universo muito mais amplo, que abrange os aspectos históricos, sociais e culturais não só dos clubes envolvidos mas também de suas cidades, regiões ou países, suas torcidas, as rivalidades, os enfrentamentos do passado, enfim, uma série de elementos que orbitam em torno do esporte. Em resumo, futebol é um simples jogo mas também pode ser muito mais do que apenas isso.

Seria muito elucidativo se a ortografia facilitasse esta distinção de significados. O esporte seria o futebol, enquanto que o universo que o circunda seria o Futebol, com inicial maiúscula mesmo. Uma pessoa pode admirar os dois, mas também pode gostar do primeiro sem necessariamente apreciar o segundo, pode simplesmente gostar do jogo, de ver grandes craques em campo, dos gols, de decisões por pênaltis, mas pouco se importar com os aspectos externos. Para uma pessoa assim a Copa do Mundo ou as fases decisivas das Champions League são programas imperdíveis, mas dificilmente uma final de Libertadores da América entre San Lorenzo e Nacional do Paraguai despertaria seu interesse.

Afinal, que o San Lorenzo venceu fora da Argentina, além do Conclave 2013? De onde surgiu esse Nacional de quem até ontem ninguém nunca tinha ouvido falar? Que grandes craques jogam nesses times? Já haviam disputado uma Libertadores alguma vez na vida?

Pouco importa se são dois clubes centenários, se o argentino carrega a sina de ser o único grande dentre os compatriotas a não ter conquistado a tão sonhada Libertadores, se tem uma das torcidas mais apaixonadas de seu país (ou mesmo do continente) e que em sua história de sofrimento foi até desalojado de seu estádio pelo governo. E o que o Paraguai representa para o futebol? O que já venceram? Quem quer saber se o Nacional era um dos grandes de seu país no primórdios, mas teve que esperar 60 anos para voltar a comemorar um título, penou para se manter vivo durante todo esse tempo, viu sua torcida minguar, mas ainda permanecer fiel (tirando Olímpia e Cerro Porteño, foi o clube do qual mais vi "referências" - camisetas, adesivos, bandeiras, escudos em térmicas de tererê - nas ruas de Asunción), se foi o clube de onde surgiu o grande Arsenio Erico? Aliás, quem mesmo é esse tal de Arsenio Erico? 

Quem quer ver uma final continental disputada em estádios simples, acanhados e antiquados como o Defensores del Chaco e o Nuevo Gasometro? Não são palcos dignos de uma taça como a que está em disputa.

Cadê o Padrão FIFA?
Para quem gosta apenas de futebol, trata-se de um jogo inferior, sem maiores atrativos. Mas para quem é apaixonado pelo Futebol, esta é uma das finais de Libertadores mais fantásticas de todos os tempo.

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Há ainda uma terceira opção ortográfica: o futebol alegre, descompromissado, onde mais vale a beleza de um drible do que um gol, uma primorosa apresentação do que uma vitória, que aplaude pedaladas e dribles sem objetividade, este jogo repleto de superficialidade que muitos chamam de futebol arte, para estes a última flor da Lazio do Lácio pode nos brindar com um homônimo: phutebol.

sábado, 26 de julho de 2014

Uma Copa não precisa de legados.

Confesso que fui um daqueles que imaginou que as precariedades do nosso país trariam o caos durante a Copa: aeroportos congestionados, trânsito caótico, pessoas não conseguindo chegar aos estádios, enfim, uma imensa bagunça.

Pois quando o país foi anunciado como sede do evento, fomos assolados por uma enxurrada de promessas de melhorias em aeroportos, linhas de metrô, avenidas, viadutos, ou seja, todos os problemas da dita mobilidade urbana estariam resolvido. E sabíamos que isso não aconteceria, tanto que o tempo mostrou que estávamos todos certos, pois tirando um ou outra reforma, praticamente nada foi feito.

Mas o caos não veio e teve Copa. É verdade que foram tomadas algumas medidas para remediar os problemas estruturais dispensando muitos moradores locais da necessidade de se locomoverem em dias de jogos (feriados, ponto facultativo, antecipação de férias escolares), e como a quantidade dos demais turistas e de outros grandes eventos neste período caiu consideravelmente, houve até uma diminuição do número de voos. O torneio aconteceu sem maiores problemas, mesmo que quase nada tenha sido feito em relação à mobilidade.

Falava-se muito do tal "legado da Copa", as melhorias que seriam feitas para o evento e que ficariam à disposição dos brasileiros ao final dos jogos. Passados alguns dias, eu me dei por conta que, apesar das obras prometidas não terem saído do papel, a Copa do Mundo no Brasil deixou um grande legado, que será útil não apenas para nós brasileiros, que poderemos utilizá-lo nos Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro, mas também será de imensa valia para todos os demais países que desejam sediar um evento desta magnitude: uma Copa não precisa deixar legado algum! Este é o grande legado que fica para o Brasil e o mundo. Uma competição desta grandeza não precisa de  BRT, VLT ou sei lá o quê, de linhas de metrô, corredores de ônibus, aeroportos em quantidade ou qualidade, viadutos e muito menos de trem bala. Talvez as cidades precisem, mas esta necessidade independe de torneio algum. Utilizar um grande evento como justificativa para a construção de melhorias que uma cidade tanto precisa é um grande atestado de incompetência por parte dos administradores públicos.

Uma Copa precisa de estádios e o resto é detalhe. Não precisa ficar restrita a países ricos ou que não se importam em jogar o dinheiro do povo fora. Apesar de suas precárias condições estruturais, a Argentina poderia sediar a competição no mês que vem. Outros países sulamericanos também poderiam sediar o torneio, como Chile, Colômbia e até o Peru, bastando-lhes apenas uma maquiagem nos estádios.

Acho até injusto que países como estes sejam privados de realizar tão bela festa.

terça-feira, 24 de junho de 2014

Rememorando Copas

1982 - Como então tinha apenas 3 anos, não posso ter memórias da Copa na Espanha, mas tenho lembranças: dois bonequinhos citriformes(?) do mascote, o Naranjito.

1986 - Por ser minha primeira Copa e sendo tudo novidade, talvez seja aquela da qual mais guardo recordações de detalhes. Uma das primeiras foi a tabelinha dos jogos, brinde dos postos Atlantic. As tabelas,  muito comuns então, continham informações sobre os grupos, os horários e locais de partidas e espaço para apontar os resultados. Esta trazia junto uma folha com várias bandeirinhas dos países participantes, que deveriam ser recortadas e coladas nos espaços das fases seguintes, conforme as seleções iam avançando. Através dela que tive conhecimento de cidades mexicanas como Guadalajara, Toluca, León e QUERÉTARO, que até hoje não saberia indicar no mapa onde fica. Eu também tinha uma camiseta com uma estampa emborrachada do mascote, que "buzinava" ao ser pressionado. Mas não me recordo se ela também fazia parte da campanha publicitária da Atlantic ou não.
Outra lembrança são as figurinhas: os chicletes Ping Pong traziam as imagens dos jogadores (as figurinhas de seleções menores, como a da Hungria, vinham com dois atletas) e das bandeiras dos países participantes. Como eu não tinha o álbum, colava-as num caderno.

O craque que fez falta na seleção brasileira
Havia também uma coleção de figurinhas que vinham nos salgadinhos Elma Chips. Nelas apareciam as bandeiras das seleções e personagens da turma do Snoopy. Para mim, foi difícil de entender porque a Inglaterra era representada por uma bandeira branca com uma cruz (de São Jorge) vermelha e não pela Union Jack.




Recordo também que os alunos do Medianeira eram liberados no meio da tarde para verem os jogos do Brasil em casa. Das transmissões lembro-me da estreia do Tira-teima na Globo, das vinhetas do Arakem e da música que a emissora fez para a Copa ("Mexe, mexe, mexe coração/vamo que vamo que essa bola vai rolar/mexe, mexe, mexe coração/tanta emoção vai ser difícil segurar"). Dos jogos guardo imagens bem vivas: o gol mal anulado da Espanha (o Tira-teima mostrou que a bola entrou), a revelação Josimar, a Dinamáquina, Zico errando pênalti, Sócrates cobrando o seu quase sem tomar distância, a bola que bateu na trave, nas costas do Carlos e entrou e a sofrida desclassificação diante da França.

"Agora vamos torcer para a Alemanha", orientou-nos sabiamente nossa mãe, sempre orgulhosa de suas origens. Como as mães costumam saber o que é melhor para os filhos, sigo o seu conselho até hoje.

1990 - recordo que havia um clima bem hostil à seleção e ao seu treinador, tanto por parte de imprensa quanto por parte dos torcedores. Parece que fui contagiado pois não nutria simpatia alguma por aquele grupo, mesmo que hoje não consiga encontrar alguma explicação racional para isso. Tenho lembranças bem menos vivas, a propaganda do Fiat Uno com o Lazaroni, a zebra no jogo inicial, um espalhafatoso Higuita, sempre jogando adiantado, um bom goleiro costariquenho chamado Conejo. Até a música da Globo eu achei bem inferior à anterior ("Papa essa, Brasil, papa essa Brasil/vai nesse bola/que quem tem bola vai a Roma").  Ah, e a mais bela camisa de uma seleção em toda a história da humanidade.



A Elma Chips lançou mais uma vez suas figurinhas, mas desta vez as bandeiras eram acompanhadas por figuras caracterizadas de modo estereotipado. 


Lembro também que a tabelinha que eu consegui era bem pequena, acho que era da Caixa, e com ela tomei conhecimento da existência de cidades como Cagliari, Bari e Palermo.  Fiquei muito feliz com o resultado final, apesar da minha torcida ter sido mesmo para Camarões. Anos mais tarde consegui alguns selos daquela Copa, ganhei de uma freira de uma congregação italiana, que era diretora do colégio onde estudei em 1993. Eles estampavam as federações participantes e os estádios.


1994 - Talvez por não ser mais tão novidade, guardo poucos detalhes extra-campo daquela Copa, e acho que não colecionei nada relacionado ao evento. Nem lembro da música da Globo, talvez até fosse o primeiro ano da genérica "eu sei que vou...". Pela primeira vez soube que alguém que eu conhecia, um conterrâneo, fora ver uma Copa ao vivo. Apesar de também contestada, a seleção que foi aos Estados Unidos tinha algo que me impelia a torcer por ela. Pela minha idade, lembro de muitos jogos e comemorei bastante o título.

1998 - Acompanhei praticamente todos os jogos, pois a UFRGS estava em greve. As aulas recomeçaram poucos dias antes da final. Um Zagallo prepotente, arrogante e costumeiramente equivocado afastou minha torcida. Vi a decisão em Porto Alegre, junto de colegas de faculdade, um quinta coluna infiltrado. Recordo ruborizado de vergonha que até pintei o rosto de verde e amarelo. Uma boa lembrança desta Copa foram as belas reportagens que o Armando Nogueira fez sobre a França e que iam ao ar na Band. Foi a última Copa onde as tabelinhas tiveram sua utilidade.

2002 - A Copa em que se acordava bem cedo para ver os jogos, em que as notícias chegavam via internet, tecnologia que aumentou a quantidade e agilizou a troca de informações e matou as até então imprescindíveis tabelinhas. Improvisei uma TV para ver os jogos em meu consultório e torci muito pelo time do Felipão, apesar da presença do Judas de chuteira. Lamentei haver uma final contra a Alemanha, mas a torcida pelo Brasil prevaleceu.

2006 - A primeira Copa das redes sociais. O clima de oba-oba do time brasileiro era total, não havia como torcer por uma seleção como a que passou por Weggis. Vi os jogos na TV improvisada no consultório e lamentei muito a eliminação de Alemanha e Portugal nas semi-finais. Dentre os finalistas, nenhum me agradava muito, mas devo ter escolhido a França para torcer.

2010 - A última Copa do Orkut, recordo que fui muito hostilizado por comemorar efusivamente a eliminação italiana. Não cheguei a torcer com muito entusiasmo para a seleção, mas tenho certeza que seria muito interessante ver o time de Dunga campeão, especialmente pelo modo como ele se relacionava com a imprensa. Em minhas Copas, Uruguai x Gana foi o jogo mais emocionante dentre todos tantos que eu vi. Outra lembrança que eu guardo foi minha volta ao universo das figurinhas, sob influência de minha irmã. A final entre duas seleções das quais não gostava me desanimou, mas hoje penso que foi bobagem da minha parte querer ignorar a partida. Foi um belo jogo.

2014 - Como escrevi em uma rede social "nos últimos 28 anos, acompanhei com entusiasmo 7 Copas do Mundo. A corrupção e a incompetência moldam a minha opinião a respeito dos governos mas não influenciam em nada o meu gosto pelo torneio ou se minha torcida vai para esta ou aquela seleção".E ao contrário do que uns disseram, tem Copa sim, e uma Copa muito boa por sinal.

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As imagens eu catei todas na internet, a maioria em sites como o Mercado Livre. Sinal que o saudosismo também movimenta a economia.

terça-feira, 1 de abril de 2014

Um (estranho) lituano na praça de Cerro Largo

Tinha tudo para ser uma manhã de um domingo de verão como qualquer outra. Após acordar mais cedo do que pretendia, resolvi levar minha cachorrinha Brenda para dar uma caminhada enquanto a temperatura ainda era agradável. Fomos até a praça e é lá que encontrei a razão deste texto: um senhor de cabelos grisalhos, farto bigode e uma máquina fotográfica pendurada no pescoço tentava, sem sucesso, acender um cachimbo com um isqueiro do tipo Zippo. Com o cachimbo na boca, começou a falar algumas palavras que não pude compreender, mas pela sonoridade e pela ênfase (aliadas aos traços faciais), presumi serem impropérios proferidos em um idioma de algum país do leste europeu.
Ao perceber minha presença, perguntou se tinha fogo, desta vez falando algo que lembrou o espanhol. "Disse" que não, movendo a cabeça para os lados, mas iniciei uma tentativa de diálogo. Logo descobrimos que com um misto de inglês, espanhol e alemão tínhamos condições de dar prosseguimento à nossa conversa.
Seu nome era Gustav Hayekius, um marinheiro aposentado que mora na Lituânia. Seu filho conheceu a namorada brasileira na Polônia, e vieram todos passar o Natal com a família dela, que é do interior de Guarani das Missões. O nome é uma homenagem ao pai que não conhecera, um soldado alemão que participou do cerco a Leningrado e por quem sua mãe se apaixonara perdidamente. Gostava de observar pássaros e cedo da manhã, quando a cidade ainda dormia em silêncio, sua atividade era mais produtiva, disse-me mostrando sabiás, caturritas e até um pica-pau pelo visor de sua câmera.
Após as apresentações iniciais e talvez para tentar ser simpático, o estrangeiro elogiou a "bela obra de arte" exposta nesta praça, apontando para a base do que seria o monumento homenagem ao cooperativismo. Com um pouco de dificuldade imposta por nosso "patoá de emergência" (que até funcionava a contento, para desespero de Zamenhof), expliquei a polêmica que envolveu sua construção. Um pouco surpreso, ele disse que pensou ser uma obra conceitual, que um paralelepípedo de concreto pode tem um significado muito vasto e suscitar os mais variados sentimentos em quem o vê. Respondi que não concordava muito com esses conceitos duchampianos de arte e que ainda via a necessidade do belo numa obra. "O senhor conhece o Roger Scruton?", perguntei.
Percebi que meu questionamento foi interpretado como uma provocação intelectual. "Considero sua visão artística muito rígida, amparada em conceitos arcaicos, mas gostei daquele livro dele sobre vinhos", respondeu.
A conversa voltou para o monumento. Ao explicar quem era a patrocinadora da obra ele se manifestou: 
- As pessoas não gostam de bancos. É a "mentalidade anticapitalista" citada por Mises, tão em voga nos dias de hoje. Já leu Mises? - perguntou. Disse que não, mas que sabia de quem se tratava. Falei também que uma das queixas principais era pela perda de uma área verde para uma estrutura de concreto.
Caminhávamos lentamente durante a conversa. Tentei mudar de assunto, perguntando algo sobre seu país. Ele quis saber se eu já estivera na Lituânia: respondi que o mais perto que cheguei foi ter conhecido uma moça da vizinha Letônia, Solvita era seu nome, uma loira tão bonita quanto insuportável. Com um sorriso no rosto, disse que conheceu muitas loiras do país vizinho, todas muito belas, todas insuportáveis. Mas a curiosidade de meu interlocutor estava mesmo no monumento. Enquanto eu recolhia a sujeira que a Brenda tinha feito ele apontou para uma outra obra, perguntando se aquela também não pode ser concluída. Disse que não, que já estava pronta e expliquei o que ela significava. 
- E esta foi bem aceita pela população? 
Disse que houve reclamações, mas na época não havia as redes sociais que potencializaram os protestos de agora.
- Vai me dizer que aqueles copos e garrafas no chão são uma espécie de intervenção urbana? - perguntou num tom explícito de ironia e que preferi fazer de conta que não entendi.
- E aqueles dinossauros de concreto lá perto do parquinho? Como deixaram fazer aquilo? Já vi guerras civis iniciarem por muito menos.
- Sempre haverá quem não gostou, não há como agradar a todos. Apesar de tudo, nossa praça é muito bonita - disse para tentar deixar uma boa impressão ao visitante - inclusive já foi considerada a mais bonita do estado.
Nesse momento ele parou de caminhar. Olhou para o alto das árvores, olhou ao seu redor e começou a disparar uma rajada de críticas:
- A mais bonita do estado? Com calçadas quebradas, galhos podres, inço? Falta de padronização nos bancos, lixeiras e iluminação? Sem cuidados de paisagismo? Com todo esse lixo no chão? Não quero nem imaginar como são as praças feias do seu país.
Tamanha falta de cortesia fez meu bairrismo florescer: num tom mais severo, disse que a praça era muito bonita sim, que havia algo que podia ser melhorado mas nada que ofuscasse a beleza do lugar. Que as pessoas que cuidavam dela faziam um trabalho exemplar e que para deixá-la com um aspecto de jardins de Versailles era necessário muito dinheiro e muita mão-de-obra, algo que a prefeitura não dispunha por causa de suas outras prioridades, como saúde e educação.
- E por que vocês não privatizam a praça? - perguntou para o meu espanto.
Foi a minha vez de olhar para os lados, ele estava pisando num terreno perigoso.
- É muito provável que a ideia não fosse bem aceita. Por aqui "privatização" é praticamente um palavrão. A reação seria muito pior do que na história do monumento.
- Mas não mudaria nada para as pessoas - argumenta -, "vendam" a praça para alguém que poderá construir seu monumento, dar seu nome ao local enquanto se compromete a manter tudo no mais perfeito estado de conservação. Imagine uma hipotética fábrica de chapéus que tenha interesse em "comprar" a praça: ela pagaria uma quantia à prefeitura, poderia construir um monumento ao chapeleiro, talvez até um quiosque para expor seus produtos, e o local passaria a se chamar Praça Chapelaria do Fulano. As pessoas continuariam a vir aqui como sempre fizeram, teriam um local impecavelmente bem cuidado, a prefeitura não precisaria dispor de recursos para manter a área e ainda receberia uma quantia em dinheiro.
Ouvi tudo, espantado com a ousadia da ideia. Quando iria explicar o motivo pelo qual ela não seria bem aceita, o sino começou a tocar, avisando que faltavam trinta minutos para a missa começar. Perguntei se ele ficaria mais tempo por aí e se nós poderíamos continuar a conversa depois do meu compromisso. Ele respondeu que sim, mas ao final da missa procurei-o em vão por toda a praça. Nenhum sinal dele, assim como do lixo da noite anterior, que já tinha sido todo recolhido. Mal começara o domingo e nossa bela praça já estava mostrando todo o seu esplendor, para a alegria de seus frequentadores. Mas que velho desaforado!, escapou de ouvir poucas e boas pelas bobagens que falou. Aposto que em seu país não há uma praça tão bonita quanto a nossa. E pena que ele não não fora visto por mais ninguém. É capaz de pensarem que esta história não passa de uma mentira.
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