Tinha tudo para ser uma manhã de um domingo de verão como qualquer outra. Após acordar mais cedo do que pretendia, resolvi levar minha cachorrinha Brenda para dar uma caminhada enquanto a temperatura ainda era agradável. Fomos até a praça e é lá que encontrei a razão deste texto: um senhor de cabelos grisalhos, farto bigode e uma máquina fotográfica pendurada no pescoço tentava, sem sucesso, acender um cachimbo com um isqueiro do tipo Zippo. Com o cachimbo na boca, começou a falar algumas palavras que não pude compreender, mas pela sonoridade e pela ênfase (aliadas aos traços faciais), presumi serem impropérios proferidos em um idioma de algum país do leste europeu.
Ao perceber minha presença, perguntou se tinha fogo, desta vez falando algo que lembrou o espanhol. "Disse" que não, movendo a cabeça para os lados, mas iniciei uma tentativa de diálogo. Logo descobrimos que com um misto de inglês, espanhol e alemão tínhamos condições de dar prosseguimento à nossa conversa.
Seu nome era Gustav Hayekius, um marinheiro aposentado que mora na Lituânia. Seu filho conheceu a namorada brasileira na Polônia, e vieram todos passar o Natal com a família dela, que é do interior de Guarani das Missões. O nome é uma homenagem ao pai que não conhecera, um soldado alemão que participou do cerco a Leningrado e por quem sua mãe se apaixonara perdidamente. Gostava de observar pássaros e cedo da manhã, quando a cidade ainda dormia em silêncio, sua atividade era mais produtiva, disse-me mostrando sabiás, caturritas e até um pica-pau pelo visor de sua câmera.
Após as apresentações iniciais e talvez para tentar ser simpático, o estrangeiro elogiou a "bela obra de arte" exposta nesta praça, apontando para a base do que seria o monumento homenagem ao cooperativismo. Com um pouco de dificuldade imposta por nosso "patoá de emergência" (que até funcionava a contento, para desespero de Zamenhof), expliquei a polêmica que envolveu sua construção. Um pouco surpreso, ele disse que pensou ser uma obra conceitual, que um paralelepípedo de concreto pode tem um significado muito vasto e suscitar os mais variados sentimentos em quem o vê. Respondi que não concordava muito com esses conceitos duchampianos de arte e que ainda via a necessidade do belo numa obra. "O senhor conhece o Roger Scruton?", perguntei.
Percebi que meu questionamento foi interpretado como uma provocação intelectual. "Considero sua visão artística muito rígida, amparada em conceitos arcaicos, mas gostei daquele livro dele sobre vinhos", respondeu.
A conversa voltou para o monumento. Ao explicar quem era a patrocinadora da obra ele se manifestou:
- As pessoas não gostam de bancos. É a "mentalidade anticapitalista" citada por Mises, tão em voga nos dias de hoje. Já leu Mises? - perguntou. Disse que não, mas que sabia de quem se tratava. Falei também que uma das queixas principais era pela perda de uma área verde para uma estrutura de concreto.
Caminhávamos lentamente durante a conversa. Tentei mudar de assunto, perguntando algo sobre seu país. Ele quis saber se eu já estivera na Lituânia: respondi que o mais perto que cheguei foi ter conhecido uma moça da vizinha Letônia, Solvita era seu nome, uma loira tão bonita quanto insuportável. Com um sorriso no rosto, disse que conheceu muitas loiras do país vizinho, todas muito belas, todas insuportáveis. Mas a curiosidade de meu interlocutor estava mesmo no monumento. Enquanto eu recolhia a sujeira que a Brenda tinha feito ele apontou para uma outra obra, perguntando se aquela também não pode ser concluída. Disse que não, que já estava pronta e expliquei o que ela significava.
- E esta foi bem aceita pela população?
Disse que houve reclamações, mas na época não havia as redes sociais que potencializaram os protestos de agora.
- Vai me dizer que aqueles copos e garrafas no chão são uma espécie de intervenção urbana? - perguntou num tom explícito de ironia e que preferi fazer de conta que não entendi.
- E aqueles dinossauros de concreto lá perto do parquinho? Como deixaram fazer aquilo? Já vi guerras civis iniciarem por muito menos.
- Sempre haverá quem não gostou, não há como agradar a todos. Apesar de tudo, nossa praça é muito bonita - disse para tentar deixar uma boa impressão ao visitante - inclusive já foi considerada a mais bonita do estado.
Nesse momento ele parou de caminhar. Olhou para o alto das árvores, olhou ao seu redor e começou a disparar uma rajada de críticas:
- A mais bonita do estado? Com calçadas quebradas, galhos podres, inço? Falta de padronização nos bancos, lixeiras e iluminação? Sem cuidados de paisagismo? Com todo esse lixo no chão? Não quero nem imaginar como são as praças feias do seu país.
Tamanha falta de cortesia fez meu bairrismo florescer: num tom mais severo, disse que a praça era muito bonita sim, que havia algo que podia ser melhorado mas nada que ofuscasse a beleza do lugar. Que as pessoas que cuidavam dela faziam um trabalho exemplar e que para deixá-la com um aspecto de jardins de Versailles era necessário muito dinheiro e muita mão-de-obra, algo que a prefeitura não dispunha por causa de suas outras prioridades, como saúde e educação.
- E por que vocês não privatizam a praça? - perguntou para o meu espanto.
Foi a minha vez de olhar para os lados, ele estava pisando num terreno perigoso.
- É muito provável que a ideia não fosse bem aceita. Por aqui "privatização" é praticamente um palavrão. A reação seria muito pior do que na história do monumento.
- Mas não mudaria nada para as pessoas - argumenta -, "vendam" a praça para alguém que poderá construir seu monumento, dar seu nome ao local enquanto se compromete a manter tudo no mais perfeito estado de conservação. Imagine uma hipotética fábrica de chapéus que tenha interesse em "comprar" a praça: ela pagaria uma quantia à prefeitura, poderia construir um monumento ao chapeleiro, talvez até um quiosque para expor seus produtos, e o local passaria a se chamar Praça Chapelaria do Fulano. As pessoas continuariam a vir aqui como sempre fizeram, teriam um local impecavelmente bem cuidado, a prefeitura não precisaria dispor de recursos para manter a área e ainda receberia uma quantia em dinheiro.
Ouvi tudo, espantado com a ousadia da ideia. Quando iria explicar o motivo pelo qual ela não seria bem aceita, o sino começou a tocar, avisando que faltavam trinta minutos para a missa começar. Perguntei se ele ficaria mais tempo por aí e se nós poderíamos continuar a conversa depois do meu compromisso. Ele respondeu que sim, mas ao final da missa procurei-o em vão por toda a praça. Nenhum sinal dele, assim como do lixo da noite anterior, que já tinha sido todo recolhido. Mal começara o domingo e nossa bela praça já estava mostrando todo o seu esplendor, para a alegria de seus frequentadores. Mas que velho desaforado!, escapou de ouvir poucas e boas pelas bobagens que falou. Aposto que em seu país não há uma praça tão bonita quanto a nossa. E pena que ele não não fora visto por mais ninguém. É capaz de pensarem que esta história não passa de uma mentira.
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