Tempos atrás fiquei sabendo da existência de uma associação chamada Nheçuanos, cujo nome é uma referência ao cacique guarani Nheçu, responsável por ordenar o assassinato dos padres Roque Gonzales, João de Castilhos e Afonso Rodrigues, ocorrido no início do séc. XVII aqui na região das Missões. O objetivo desta associação é fazer a revisão histórica da 1ª fase das missões jesuíticas e o resgate da figura do cacique.
Sempre fico bastante receoso quando alguém vem com esta conversa de revisar a história, por ser algo que costuma ser feito com más intenções, mas desta vez me obrigo a concordar com a proposta.
O índio no Brasil sempre foi retratado como uma figura infantilizada, idílica e pacífica, sem vontade própria e facilmente manipulável por qualquer um que lhe impusesse algo. Uma mistura do bom selvagem de Rousseau com o zeloso Peri de José de Alencar, duas figuras ficcionais cuja fusão não poderia resultar algo condizente com a realidade.
O que haveria de tão diferente neles para que estes não agissem como qualquer outro ser humano, passíveis tanto de acertos quanto de erros? O que os faria imunes a sentimentos como paixão, raiva, inveja e vaidade, a pretensões de expansão territorial e de acúmulo de poder e riquezas?
Com a instalação da missões jesuíticas em seu território e consequente conversão de muitos guaranis à fé cristã, Nheçu viu seu poder diminuir. E é uma grande injustiça julgar sua reação com os parâmetros contemporâneos de diplomacia. O cacique agiu como era o costume de sua tribo e, utilizando as prerrogativas que tinha por ser a autoridade maior daquela terra, decidiu por fim à vida daqueles que se mostraram um incômodo para ele, até então o grande chefe desta região. Novamente, não há motivos para retratar o que se seguiu como sendo uma brutalidade: os padres tiveram o destino que qualquer inimigo dos guaranis teria em situação semelhante. Não é correto questionar a ausência de um tribunal com direito à defesa em uma cultura onde as decisões eram monocráticas, assim como não faz sentido questionar a pena capital em detrimento a penas mais brandas, como o desterro, pois estaríamos avaliando a questão segundo códigos morais que eram estranhos a eles.
Outro mito muito divulgado é que os índios foram obrigados a abrir mão de sua cultura, e este episódio é uma grande oportunidade para desmascarar esta mentira. Com o assassinato dos jesuítas, os guaranis estavam livres para voltar ao seu modo de vida anterior, sob o comando de seu líder. Mas não foi este o desejo da maioria: de modo totalmente voluntário eles se revoltaram com o ocorrido e rapidamente subjugaram os poucos índios obedientes ao cacique. Diante deste quadro, Nheçu abandonou aqueles que ainda lhe eram fiéis e fugiu, e nunca mais se teve notícias deles.
É por isso que eu aplaudo a ideia de resgatar a figura de Nheçu. Despindo-o de qualquer contorno mitológico, estaremos diante de ser humano como qualquer um de nós, cujos atos dependiam de suas próprias decisões, das tradições de seu povo e do contexto histórico no qual ele estava inserido. Durante séculos, o cacique guarani foi retratado como um chefe bárbaro e sanguinário, sendo esta uma acusação descontextualizada por se basear em padrões morais e culturais que não os seus. É bom que as pessoas saibam o que realmente aconteceu. Na verdade, não é bem o caso de revisar a história, mas sim compreender realmente quem foram seus personagens.