Na minha época de colégio lembro ter estudado que havia uma diferença entre história e estória, sendo que a primeira estava relacionada com os fatos reais e a segunda com os fictícios. E quando o termo História vinha assim grafado, com inicial maiúscula (ou CAIXA ALTA, como li nas versões em português de Soljenitsin), ele descrevia a disciplina escolar.
Mas a língua portuguesa, esta personagem tão sofrida e sempre submissa àqueles que a representam, justamente quem mais deveria tratá-la com carinho, aceitou que esta questão fosse simplificada e o termo estória caiu em desuso. E apesar desta clara demonstração de que os idiomas tendem a refletir a preguiça de quem os utiliza, não me importo em ir contra as caudalosas correntes do ócio ortográfico.
Há palavras com significados variados que não permitem que se estabeleça uma linha divisória entre eles sem que haja explicações adicionais, casos em que alguma diferença ortográfica para definir com clareza sua compreensão seria bem-vinda. Um exemplo é futebol, cujo termo pode definir a modalidade esportiva, ou seja, a disputa entre duas equipes de 11 jogadores cada em dois tempos de 45 minutos, conforme as regra pré-estabelecidas, mas também pode ser utilizado para descrever um universo muito mais amplo, que abrange os aspectos históricos, sociais e culturais não só dos clubes envolvidos mas também de suas cidades, regiões ou países, suas torcidas, as rivalidades, os enfrentamentos do passado, enfim, uma série de elementos que orbitam em torno do esporte. Em resumo, futebol é um simples jogo mas também pode ser muito mais do que apenas isso.
Seria muito elucidativo se a ortografia facilitasse esta distinção de significados. O esporte seria o futebol, enquanto que o universo que o circunda seria o Futebol, com inicial maiúscula mesmo. Uma pessoa pode admirar os dois, mas também pode gostar do primeiro sem necessariamente apreciar o segundo, pode simplesmente gostar do jogo, de ver grandes craques em campo, dos gols, de decisões por pênaltis, mas pouco se importar com os aspectos externos. Para uma pessoa assim a Copa do Mundo ou as fases decisivas das Champions League são programas imperdíveis, mas dificilmente uma final de Libertadores da América entre San Lorenzo e Nacional do Paraguai despertaria seu interesse.
Afinal, que o San Lorenzo venceu fora da Argentina, além do Conclave 2013? De onde surgiu esse Nacional de quem até ontem ninguém nunca tinha ouvido falar? Que grandes craques jogam nesses times? Já haviam disputado uma Libertadores alguma vez na vida?
Pouco importa se são dois clubes centenários, se o argentino carrega a sina de ser o único grande dentre os compatriotas a não ter conquistado a tão sonhada Libertadores, se tem uma das torcidas mais apaixonadas de seu país (ou mesmo do continente) e que em sua história de sofrimento foi até desalojado de seu estádio pelo governo. E o que o Paraguai representa para o futebol? O que já venceram? Quem quer saber se o Nacional era um dos grandes de seu país no primórdios, mas teve que esperar 60 anos para voltar a comemorar um título, penou para se manter vivo durante todo esse tempo, viu sua torcida minguar, mas ainda permanecer fiel (tirando Olímpia e Cerro Porteño, foi o clube do qual mais vi "referências" - camisetas, adesivos, bandeiras, escudos em térmicas de tererê - nas ruas de Asunción), se foi o clube de onde surgiu o grande Arsenio Erico? Aliás, quem mesmo é esse tal de Arsenio Erico?
Quem quer ver uma final continental disputada em estádios simples, acanhados e antiquados como o Defensores del Chaco e o Nuevo Gasometro? Não são palcos dignos de uma taça como a que está em disputa.
Cadê o Padrão FIFA? |
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Há ainda uma terceira opção ortográfica: o futebol alegre, descompromissado, onde mais vale a beleza de um drible do que um gol, uma primorosa apresentação do que uma vitória, que aplaude pedaladas e dribles sem objetividade, este jogo repleto de superficialidade que muitos chamam de futebol arte, para estes a última flor da Lazio do Lácio pode nos brindar com um homônimo: phutebol.